quinta-feira, 26 de setembro de 2019

No caminho das missões jesuíticas



           Um grupo de peregrinos da Diocese de Bagé organizou uma visita às reduções missioneiras do Brasil e Argentina, uma viagem de história, fé, cultura, memória, geografia, convivência.
          Queremos nos dar conta que a área de nossa Diocese fazia parte dos Sete Povos, pois era aqui que se localizavam as estâncias para a criação de gado, especialmente a estância de São Miguel Arcanjo, mas também de São Nicolau.
          Nossa região era o espaço onde circulavam muitos miguelistas e nicolaístas, como também os missionários jesuítas. Temos até hoje resquícios desta época.
         Dos trinta povos das Missões, oito ficavam onde hoje é o Paraguai, quinze povos onde está o território da Argentina e sete povos no Tape, como era chamado o Rio Grande do Sul.
          Nosso caminho iniciou em Santo Ângelo, o último dos Sete Povos, onde temos a praça central e a Catedral Angelopolitana, construída exatamente sobre a igreja que ali existia no tempo das reduções. Vale a pena também visitar o Museu Municipal, onde existe uma maquete de como era o povo de Santo Ângelo Custódio.
         A visita a São Miguel Arcanjo, que em 1983 foi declarado Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela UNESCO, Organização das Nações Unidas para Educação, Ciências e Cultura, é indispensável, sendo o povo que tem a maior estrutura conservada e em pé. Nesta visita podemos ter uma ideia de como eram organizadas as reduções: a igreja, a praça grande, o Cotiguaçu (local onde eram acolhidos os órfãos, as viúvas, as mulheres sozinhas), o cemitério, a casa dos padres, com as oficinas, escola, armazéns, o tambo, a quinta... E em torno da praça ficavam as casas (viviendas), em três, quatro ou mais quarteirões, com suas varandas. Na entrada da praça ficava o Cabildo, órgão encarregado pela Administração, com seu alferes e demais membros, encarregados do trabalho e de toda estrutura da Redução.
      São Miguel conserva também um acervo de imagens sacras, desta época, construída pelo arquiteto Lúcio Costa. E a visita inclui, à noite, o espetáculo Som e Luz, com duração de 48 minutos, uma verdadeira volta aos tempos, com um conhecimento de história, cultura e fé. É aqui em São Miguel, que o menino Sepé Tiaraju, nascido em São Luiz Gonzaga, órfão ficando foi acolhido pelos missionários. Aqui é educado e foi eleito alferes (prefeito), provavelmente no dia 31 de dezembro de 1749, como era costume.
         Incluímos na visita uma grande celebração eucarística no Santuário dos Mártires, em Caaró, um verdadeiro santuário ecológico, local de muitas peregrinações e de muitas inspirações, banhada pelo sangue dos mártires jesuítas e de vários indígenas.
       Para chegar à Argentina, vários caminhos existem. Optamos por São Borja (os outros passos são feitos por balsa, atravessando o Rio Uruguai).  No país vizinho, fomos visitar San Ignacio Mini, a mais conservada das quinze reduções que ficavam em solo hermano.
        San Ignacio nos reserva belas surpresas, com a sua estrutura, o que nos possibilita ter uma ideia mais clara de como eram as reduções. À noite, como em São Miguel, um belo espetáculo de luz e música, onde a pessoa é desafiada a caminhar junto no sítio arqueológico e entender melhor o que representou toda esta experiência, acabada pela cobiça humana.

Praça Pinheiro Machado em Santo Angelo com a Catedral Angelopolitana ao fundo 

Ruínas de São Miguel Arcanjo no RS
Ruínas de Santo Ignácio Mini em Posadas - Argentina

Rio Paraná em Posadas na Argentina


terça-feira, 17 de setembro de 2019

Porto seguro ou farol?


“Tua Palavra é lâmpada para meus pés e luz para o meu caminho” (Sl 119,105)

            As pessoas buscam a felicidade. As pessoas querem ser felizes.

              As pessoas buscam a paz. A paz é um caminho.

                As pessoas buscam um porto seguro para suas vidas, e a vida nos apresenta um farol.

        Todos nós caminhamos para um horizonte. Não podemos bani-lo de nossa caminhada existencial, mesmo diante das incertezas. Mais do que um porto seguro, nós devemos ter e procurar um farol, que nos mostre o caminho, que nos faz sempre sair, andar, caminhar, estar em movimento.

            O porto seguro é uma segurança, que pode nos acomodar e impedir continuarmos as nossas buscas. O farol, ao contrário, é referência, é uma sinalização por onde podemos ou não devemos andar.

         A vida encerra riscos e pode ter imprevisibilidades. Por isso, não se pode perder de vista o horizonte que faz parte da própria experiência de fé cristã. O cristão é convidado a mergulhar no seio da história a fim de encontrar sinais do Espírito que testemunhem a vitória da vida sobre a morte e a superação dos medos que bloqueiam a passagem, a páscoa da transfiguração do mundo e sua trans-significação conforme o Mistério Pascal de Cristo. Enfim, o Espírito faz surgir no coração humano, mesmo daqueles que não creem, o desejo incessante de buscar saídas para os problemas éticos de nossos dias. A fé cristã é pensada como caminho, que às apalpadelas vai seguindo a lógica simbólica da Revelação. É necessária uma concepção de fé cristã que, recuperada desde suas origens, seja lida com o horizonte da vida em Cristo, que é um horizonte cheio de possibilidades para o agir humano e não certezas sedimentadas e fixadas para a ação.

             A vida cristã não quer ser um conjunto de regras e leis morais que impedem a pessoa de fazer o seu discernimento, de usar sua liberdade e de fazer o seu caminho. A moral cristã não é pois uma camisa de força nem um brete por onde ou se passa ou não há outra opção possível.     
 
           A Palavra de Deus (e a fé) é luz para o nosso caminhar, para o nosso viver, para as nossas escolhas. O próprio Jesus se apresenta para nós como “Caminho, Verdade e Vida” (cf. Jo 14,6). Hoje, mais do que ensinar o caminho (porto seguro), é preciso mostrar como caminhar e por ande andar (farol). Havia uma época em que se mostrava os endereços a partir de uma referência (casa, rua, árvore, loja, estrada, etc.). Hoje temos GPS, que nos leva onde queremos ir.

     A vida cristã também é assim. Devemos ajudar, através da evangelização, a que as pessoas tenham uma experiência de Deus e, a partir disso, saibam também conduzir suas vidas em consonância com o que se crê e o que se vive, não separando fé e vida, mas interagindo, confrontando, orientando, colocando-se sempre em movimento, em busca de, em crescimento.

            Muito mais do que um porto seguro, precisamos de um farol.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

1ª. Carta de João


          Para compreendermos de forma sensata e libertadora a Primeira carta de João às comunidades joaninas, melhor dizendo, carta de João às comunidades do discípulo amado e especificamente compreendermos a parte de 1 Jo 2,29–4,6 que propõe às pessoas e às comunidades cristãs que ‘para ser filha e filho de Deus temos que ser pessoas justas’ é preciso várias coisas.  Primeiro, ler, reler e tresler o texto devagarinho, de preferência de forma comunitária. Segundo, considerar a caminhada histórica das comunidades cristãs do discípulo amado. Tiveram uma origem (1ª fase) calcada na experiência da ressurreição de Jesus Cristo. Passaram por uma 2ª fase, durante a qual foram espirradas para a diáspora, entre os gentios, considerados pagãos, na Ásia Menor, após serem expulsas da sinagoga na década de 80 do século 1. Vivenciaram uma 3ª fase, por volta do ano 100 depois de Cristo, época da redação das cartas “joaninas” por um coordenador de comunidade, em Éfeso, endereçadas às comunidades cristãs do Discípulo Amado. E chegaram a uma 4ª fase, durante o Século II, depois das “cartas joaninas”. Nessas várias fases, as comunidades do discípulo amado passaram por várias crises. E nós hoje, leitoras e leitores da Primeira carta de João somos convidados a beber da seiva original de todas as fases anteriores e, principalmente, como filhas e filhos do Deus da Vida, vivendo e convivendo de forma justa e lutando pela superação de toda e qualquer injustiça que se abate sobre qualquer pessoa ou ser vivo da biodiversidade.

          Importante notar que são várias comunidades do discípulo amado, não apenas uma. Nós também, mesmo participando de comunidades diferentes, precisamos estar em comunhão conspirando em sintonia com projeto do Evangelho de Jesus Cristo que quer vida e liberdade em abundância para todos e para todos os seres vivos (cf. Jo 10,10). A caminhada histórica das comunidades cristãs do discípulo amado, passando por quatro fases, se deu como se as quatro fases fossem uma corda onde estivessem entrelaçados quatro fios. Cada fase corresponde a um fio, que não deve ser visto de forma isolada, mas como um conjunto entrelaçado. Um fio sozinho é fraco, mas quando se juntam muitos fios, entrelaçando-os, a força da fraqueza surge e se torna invencível. Assim, uma pessoa ou comunidade sozinha e isolada é frágil, mas quando se articula com outras pessoas e comunidades injustiçadas e estabelece caminhada conjunta em comunhão supera obstáculos por vezes tidos como intransponíveis, e conquista direitos. No meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) é comum ouvirmos: “isolada, sou um pedaço de pessoa. Participando da comunidade me torno pessoa inteira.”

                Outros dois critérios imprescindíveis para uma boa compreensão da mensagem da Primeira Carta de João e, especificamente, de 1 Jo 2,29-4,6, são o contexto que envolvia as comunidades do discípulo amado e como buscavam vivenciar internamente projeto de Jesus Cristo ressuscitado. O contexto era tremendamente adverso: imperialismo romano que superexplorava o povo submetido ao regime de escravidão – 1/3 das pessoas de um império com 60 milhões de habitantes não eram consideradas pessoas, mas coisas/mercadorias –, contexto de violentação do povo também pela exploração tributária – quem mais pagava impostos embutidos em tudo o que se comprava eram os pobres. As instituições religiosas predominantes mais próximas das comunidades do discípulo amado eram o judaísmo rigorista, fundamentalista e moralista ou as religiões mistéricas ou as religiões imperiais, todas anticristãs. Pela utopia do reino de Deus testemunhado por Jesus Cristo e também por necessidade, as comunidades do discípulo amado buscavam colocar em prática um projeto de vida que se pautava por quatro aspectos entrelaçados: amor, justiça, solidariedade e fraternidade.

            Em 1 Jo 1,1-2,28, vemos que as pessoas das comunidades do discípulo amado buscavam andar na luz, porque “Deus é luz” (1 Jo 1,5). Sim, Deus é luz, mas não é só luz; Deus é também justiça. Por isso na parte de 1 Jo 2,29-4,6 vemos que andar na luz implica viver na justiça. Mas que tipo de justiça a Primeira carta de João defende e que deve ser a bússola que nos guia? Certamente não é a justiça legalista e capitalista, nem a do mercado e nem a da meritocracia. A justiça que o Deus da vida quer inclui uma reorganização geral e profunda da sociedade onde o bem comum seja a coluna mestra. Implica também superar o sistema do capital e o capitalismo. (Escrito a partir de um texto do Frei Gilvander Moreira, Biblista).
 

quinta-feira, 5 de setembro de 2019


O que vimos e ouvimos

          O mês de setembro se tornou referência para o estudo e a contemplação da Palavra de Deus, tornando-se em todo o Brasil, desde 1971, na Igreja Católica, o Mês da Bíblia. Desde o Concílio Vaticano II, a Bíblia ocupou espaço privilegiado na família, nos círculos bíblicos, na catequese, nos grupos de reflexão, nas comunidades eclesiais.
           Este ano, 2019, será o 48º em que a Igreja no Brasil comemora o Mês da Bíblia. Neste sentido, a Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dando continuidade ao ciclo do tema “Para que n’Ele nossos povos tenham vida” propôs para o Mês da Bíblia o estudo da Primeira Carta de João, com destaque para o lema “Nós amamos porque Deus primeiro nos amou (1Jo 4,19). O verbo amar é uma palavra chave da Primeira Carta de João. O lema recorda que o amor provém de Deus e chega a todas as criaturas. O amor é convite que pede uma resposta que é amar. Assim a resposta ao amor de Deus é o amor aos irmãos.
          
        O objetivo deste mês é justamente fazer com que os fiéis tenham mais familiaridade com o texto da Palavra de Deus, o leiam, conheçam, estudem, rezem e o coloquem em prática. 
       As primeiras comunidades cristãs, no meio de muitas perseguições e violências, divisões internas, inclusive, sob a influência do discípulo amado, tiveram a sabedoria, a coragem e o discernimento para manterem a unidade e a perseverança na caminhada cultivando a utopia de serem fieis ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo e não se perderem na caminhada.
      “Vivemos um tempo perigoso no Brasil e no mundo. Tempo de fake news (falsas notícias) fomentando ódio e discriminações. Tempo de poder da mídia trombeteando aos quatro ventos a ideologia dominante, estamos em tempos de fundamentalismos, de céus povoados de anjos e entidades, de “demônios” por todos os lados, de gritaria de deuses – idolatria do capital. Tempo de promessas, de busca insaciável de bênçãos, de procissões, de peregrinações, de necessidade de expiação. Tempo de moralismo, de religiões sem Deus, de salvação sem escatologia, de cristianismo light, de libertações que não vão muito além da autoestima. Tempo de teologia da prosperidade em igrejas eletrônicas. Enfim, tempos de neopentecostalismo tanto dentro da Igreja Católica como em uma infinidade de outras igrejas. E tudo isso levando a graves retrocessos com relação a políticas públicas que beneficiariam a maioria do povo: corte de direitos sociais, amputação de direitos trabalhistas e previdenciários, etc.” nos diz frei Gilvander Moreira, carmelita.
            Nesse contexto, será muito bom lermos e compreendermos bem na Bíblia a Primeira carta de João (1 Jo), pois um dos graves obstáculos que as comunidades cristãs do discípulo amado – autor da 1 Jo – estavam atravessando era as investidas de grupos espiritualistas que estavam desencarnando a fé cristã e amputando a dimensão social da fé em/de Jesus Cristo e no seu Evangelho.